A perspectiva da realização de uma festa mobiliza uma série de recursos econômicos e simbólicos, dentro e fora do terreiro, além de recursos humanos. Ela começa a ser preparada muito antes do dia marcado para sua realização, seja uma festa simples ou não. É preciso tempo para que sejam tomadas uma série de providencias para conseguir recursos a fim de satisfazer os anseios de todos com relação a ela.
No caso de uma festa "simples" de orixá (sem obrigações ou iniciação envolvidas), jogam-se os búzios, antes de qualquer coisa, para saber se o orixá concorda com a festa, se deseja "comer", o quê e em que quantidade, se quer roupa nova (pergunta perigosa e que só é feita quando há condições para isso, pois a roupa do orixá é cara e trabalhosa), se a data lhe agrada e, inclusive, se certos convidados serão bem vindos.
O pai ou mãe-de-santo reúne o grupo e comunica que vai haver festa; que todos devem colaborar com trabalho, oferendas, dinheiro ou tudo isso ao mesmo tempo. Nessas ocasiões geralmente ele aproveita para avaliar a última festa e lembrar os "erros" e problemas acontecidos e as soluções que foram dadas a eles. Repreende alguns filhos por faltas cometidas, outros por não cooperarem suficientemente com o trabalho da casa e aproveita para ensinar algo sobre a "etiqueta ritual" a ser cumprida no barracão. Se o terreiro tiver condições para tanto, manda-se imprimir convites com motivo, data, endereço e até o traje adequado para a ocasião. Estes convites podem ser financiados por algum cliente que deseje agradar o orixá homenageado, por algum filho-de-santo em melhor situação financeira ou, ainda, oferecidos pelos ogãs, que se reúnem para pagá-los. Se o terreiro não tiver condições financeiras para isso, será mobilizada a rede de informação do povo-de-santo, que é eficientíssima. Essa rede passa por diversos ambientes frequentados pelos adeptos do candomblé, especialmente as festas de outras casas, as lojas de artigos religiosos, e-mail, orkut, fecebook, além de mil telefonemas e, principalmente, através das relações de parentesco de santo e de "nação" (rito que um terreiro segue). A rede de informação do povo-de-santo é tão eficiente que é costume dizerem, no candomblé, que "se você não quer que saibam de uma coisa, não deixe que aconteça". Pois se acontecer, todos saberão, mais cedo ou mais tarde, tenha o fato acontecido na dimensão pública ou privada da vida do indivíduo que vive nesta religião.
Tendo sido reunidos os recursos para a compra dos artigos necessários, todos os membros do terreiro devem estabelecer uma "escala de serviço" na casa, pois sempre há a necessidade de gente para dar conta de todos os detalhes da preparação da festa e que são muitíssimos. Até os simpatizantes (em geral clientes dos jogos de búzios) são chamados a ajudar neste trabalho.
Para que a festa possa ser realizada é necessário ainda que os adeptos se organizem também fora do terreiro. Como é preciso (e importante!) ajudar no trabalho da casa-de-santo, muita gente trabalha horas extras no emprego, não só para conseguir mais dinheiro e participar da festa, comprar uma roupa nova para si ou para seu orixá usar no "grande dia", mas também para ter tempo livre que possa ser usado nas tarefas do terreiro. É comum que pessoas que trabalhem em hospitais, por exemplo, "dobrem" seus plantões para ter um dia ou uma noite livres para dedicarem-se aos afazeres da "roça" (terreiro). Há empregadas domésticas que abandonam o emprego para serem a "mãe-criadeira" de um iaô (aquela que toma conta dele, de seu banho, sua comida, de ensinar-lhe toda a etiqueta, as cantigas etc); diaristas que faltam ao serviço apenas para poderem ajudar na "comida do santo". No caso dos iaôs, é costume aproveitarem os períodos de férias (do trabalho ou escolares) para a iniciação. Quem não trabalha "fora" como algumas donas-de-casa, deve providenciar quem cuide de seus filhos, maridos, suas casas (pois é comum que partes importantes dos rituais sejam feitas à noite; principalmente porque é neste período do dia que a maioria dos filhos-de-santo pode estar no terreiro). Quando não conseguem isto, elas levam seus filhos para a "roça", outro nome pelo qual se chamam os terreiros. Sempre se dá um jeito. Em época de "obrigação" é muito comum vermos crianças nos candomblés brincando, com pedrinhas, de "jogar búzios". Elas brincam também de "virar no santo", "fazer ebós" e outras coisas que vêem nesta convivência obrigatória com a prática do candomblé, ao acompanharem seus pais.
Quando há festa, devem ser respeitados tabus alimentares e sexuais. Com antecedência deve-se lavar, passar e engomar as roupas que serão usadas (três saiotes (anágua) para cada mulher que dance na roda-de-santo, são lavados, passados e engomados!), consertar as roupas dos orixás que, na dança da festa anterior, perderam lantejoulas, pedras ou rasgaram-se. É preciso polir as ferramentas (símbolos feitos em metal) dos orixás, as pulseiras e os adjás (sinetas) dos ebomis (que geralmente são confeccionados em latão ou zinco niquelado e escurecem com o tempo), pois eles devem imitar o brilho do ouro, da prata e do cobre, metais favoritos dos orixás. É preciso correr a cidade em busca de avícolas onde possam ser encontrados os animais preferidos pelo orixá ao qual serão sacrificados - deve haver um carro à disposição do terreiro para todo este circuito de compras - e depois se sai à procura das folhas que comporão o amaci (banho de "limpeza") dos filhos-de-santo antes da festa. Se a casa tiver seus próprios alabês (ogãs tocadores de atabaques), muito bem. Se não, eles deverão ser contratados, pois uma festa não pode prescindir da música, e no candomblé é ela que "traz" os orixás ao mundo dos homens. É costume se dizer, nos terreiros, que "sem alabê não tem candomblé".
Às vésperas da festa ou em datas regulamentada pelos orixás, atravéz do jogo de búzios, os animais são sacrificados e as "comidas secas" (são chamadas assim todas as "comidas-de-santo" que não sejam animais sacrificados) oferecidas aos orixás. Essas comidas geralmente são preparadas pela iabassê da casa (cozinheira que prepara as comidas dos orixás e que conhece os preceitos e "temperos" do gosto de cada orixá), auxiliada por equedes (mulheres que não entram em transe e são espécies de "camareiras" dos orixás) e iaôs. Cada orixá come um prato específico, preparado de modo peculiar. Um dos conhecimentos mais importantes do candomblé consiste em saber exatamente o quê cada qualidade de orixá come, "temperado" de que modo e sob que circunstâncias rituais. Já na preparação das comidas da festa, portanto, a hierarquia e seu conseqüente grau de conhecimento começa a se expressar de modo enfático.
Todo o "cardápio" da festa depende do que se chama de "qualidade" do orixá, que são avatares, caminhos do orixá e "partes ou segmentos da sua própria biografia mítica, ou representações de locais em que nessa forma foi ou é cultuado" (PRANDI, 1989:157). Todas as comidas rituais são preparadas levando-se em consideração os preceitos de cada orixá. A pipoca de Obaluayê (deburu), por exemplo, deve ser estourada na areia quente e não no óleo. Quem o faz não pode falar enquanto prepara, e assim por diante.
Nas festas de iniciação, depois do sacrifício ritual a cozinha do terreiro fica cheia de frangos, patos, galinhas d'angola etc. para serem depenados e suas vísceras devidamente separadas e preparadas, conforme a preferência dos orixás a que se destinam. Os "bichos de quatro pés" (que podem ser porcos, cabritos, carneiros, tartarugas, coelhos etc., conforme o orixá homenageado) são "pelados" e limpos pelos ogãs. É muito comum nas casas-de-santo serem vistas, curtindo ao sol ou mesmo na forma de pequenos "tapetes", as peles desses animais. É conferindo as peles na parede que o povo-de-santo sabe (e verifica) quais foram os animais sacrificados. É costume se contarem as peles e ver se elas são novas.
Depois de limpos os bichos, cozinham-se as carnes, separa-se o que cada orixá deseja e, no dia seguinte, são preparadas as comidas que serão servidas à assistência da festa, no ajeun (refeição coletiva, compartilhada entre os deuses, os membros da casa e os convidados). Compradas as bebidas, resta ainda verificar se há pratos e copos em número suficiente para os convidados. Ultimamente é bastante comum vermos o povo-de-santo comendo o ajeun em pratinhos de papel, com garfos de plástico, em lugar do tradicional ajeun servido em folhas de mamona e comido com as mãos, descrito tantas vezes na etnografia clássica sobre o candomblé.
É preciso, ainda, providenciar flores e folhas para enfeitar o barracão, fazer os laços com os ojás (panos no formato de echarpe que o povo-de-santo amarra na cabeça, na cintura etc) nos atabaques, além de manter tudo rigorosamente limpo. Durante estes dias é preciso que alguém providencie alimentação "profana" e bules e mais bules de café para os que estão trabalhando no terreiro. Toda esta trabalheira é realizada alegremente, entremeada de brincadeiras, de narrativas de casos acontecidos nos diversos candomblés e de indakas (fofocas). A cozinha é o espaço do terreiro onde se fica sabendo das coisas do candomblé e onde muitos ensinamentos são transmitidos, juntamente com avaliações de todos os tipos. É na cozinha que, além de serem preparadas as comidas dos santos, e as magias, são "cozidos" os acontecimentos das festas, as práticas dos outros terreiros (chama-se isto de "xoxar"), os casos de demanda, cura, mistérios, avaliados os desempenhos de adeptos e de orixás, a vida pública e privada do povo-de-santo em geral. É claro que não é só na cozinha que se fazem estes comentários, mas este espaço, sendo um espaço cheio do segredo do candomblé (os "feitiços" são preparados ali), é um espaço de "intimidade" do povo-de-santo dentro do terreiro.
A não ser nos momentos mais importantes, como o sacrifício dos animais e outros rituais, o pai ou mãe-de-santo estão ocupados com outros afazeres. Em geral atendendo os clientes através do jogo de búzios ou da realização de ebós, etutus (tipos de "limpeza" ritual, que incluem um sacrifício animal) ou boris (cerimônia de "dar de comer à cabeça"). Quer dizer, dando os primeiros passos na direção da próxima festa. Seja pela transformação do abiã (adepto que ainda não passou pelo rito de iniciação), que agora está dando o bori, num futuro iaô, seja pela transformação do cliente que veio jogar búzios num novo abiã.
OS CUSTOS DA FESTA
Outro aspecto importante, no que diz respeito à festa de candomblé, são seus custos. Apesar das más condições econômicas em que vive, o povo-de-santo é um grupo que consegue promover, com frequência à primeira vista intrigante, festas bastante dispendiosas.
As festas de iniciação e as "de obrigação" são as mais caras. Entre estas últimas a mais cara é a de 7 anos, conhecida como decá. Nas despesas com tais festas devem ser computadas a manutenção do iniciando e a daqueles que trabalham no terreiro durante o período de recolhimento, além de ser obrigatório o sacrifício de um bicho de "quatro pés" e quatro frangos (um para cada "pé" do bicho, diz-se; chama-se a isso de "calçar" o bicho de quatro pés). Praticamente repete-se a iniciação, multiplicando-a pelo número de orixás que já foram assentados (os 5 ou 7 orixás do enredo) e mais o caboclo (quando o indivíduo tem um), que também "comem".
Mesmo no caso de uma festa simples (comemorativa de um orixá), pelo menos uma comida seca cada deus deve receber, como vimos. Exu sempre deve comer e o orixá homenageado receber um "quatro-pés" calçado. Este "quatro-pés" geralmente é um bode ou uma cabra. Há até quem ofereça um boi a seu orixá ou caboclo, conforme a situação financeira da casa e/ou do indivíduo permitam. Mas geralmente se oferece bem menos que isso, "negociando-se" com o orixá, prometendo-se lhe dar o devido mais tarde. Apenas as "comidas secas", porém, já consomem uma considerável quantia em dinheiro do povo-de-santo, além das despesas com gás, luz, água, alimentação (e tempo!) dos que trabalham na casa, inevitáveis em qualquer atividade do terreiro.
É impossível reproduzir aqui a lista dos artigos necessários para uma festa de iniciação. Esta lista contém todos os artigos necessários não só ao assentamento do orixá (a feitura, propriamente dita), mas também aos ebós, o material do bori, da roupa de orixá e do iaô e o sustento do pessoal que trabalhará na "roça" durante o período em que o iaô estiver recolhido, em geral 21 dias. Dela constam, em média, 126 itens, sem contar as unidades como 20 orobôs, 10 litros de mel etc. Além do preço dos artigos, devemos somar, também, os honorários do pai-de-santo, chamados de "mão" ou "salva de chão", que representam o custo dos seus serviços religiosos, a serem pagos pelo iaô em dinheiro ou, quando isso não é possível, em trabalho no terreiro.
Não é fácil, portanto, para o filho-de-santo, conseguir recursos para a iniciação ou mesmo para a festa comum. No caso da iniciação, pode demorar anos. Pode se tornar impossível. Às vezes, quando há emergência, pode-se fazer o orixá "de esmola", o que significa que o próprio indivíduo ou o pai-de-santo pedirão aos filhos e clientes da casa que dêem algo da lista ou pelo menos parte, conseguindo, ao fim de certo tempo, tudo o que é necessário. Outras vezes os filhos de santo saem à rua, oferecendo um punhado de pipocas curativas de Obaluyiê, em troca de algum dinheiro para a iniciação., este mesmo ato é realizado na festa do olubajé do terreiro. Ou, ainda, é o próprio orixá que exige que tudo seja feito de esmola, ensinando assim a humildade a seus filhos. E se não for desse modo, muitas vezes o abiã não terá nunca recursos para "fazer" seu orixá. Mas não é comum que ele conte muito com os outros para se iniciar. Primeiro porque pedir a quem já tem pouco, como a maioria do povo-de-santo, é na verdade conseguir muito pouco. E depois parece haver uma questão de orgulho envolvendo o assunto. Nada, entretanto, nesse orgulho impede o abiã de aceitar "presentes" - que podem ser escolhidos numa lista como as de presentes de casamento - para seu orixá, e isso acontece freqüentemente. Clientes, amigos e parentes que simpatizam com o abiã, com o pai-de-santo ou, principalmente, que se julgam em dívida para com o orixá que será feito ou desejam "agradá-lo", costumam "presentear" o iaô, diminuindo em alguma coisa o número de itens ou a quantia a ser despendida por este. Para muitas pessoas, entretanto, é uma questão de honra gastar o que for preciso para satisfazer seu orixá. Muitos adeptos do candomblé trabalham anos a fio para ter, um dia, condição de oferecer uma esplêndida festa em honra de seu orixá, fazê-lo do modo mais perfeito possível. Pierre Verger, etnólogo francês, dizia que essas "horas de glória" criam um sentimento de honra e prestígio que ultrapassa os muros do terreiro:
"O candomblé é uma religião de exaltação da personalidade. Ela faz com que as pessoas se sintam honradas. Uma vendedora de acarajé tem prestígio. Compra-se dela com muito respeito porque ela é filha de Oxum, de uma deusa, porque sua deusa baila bem. A gente não se sente humilhada". (Declaração de Pierre Verger a Goulart de Andrade, no programa Comando da Madrugada, do SBT, em 16/11/90).
São provavelmente tais "horas de glória" que compensam todo o sacrifício, todo o investimento do povo-de-santo nas festas. Para a parte deste grupo que vive as humilhações da pobreza, da falta de todo tipo de bens, elas podem ser não apenas altamente revigorantes mas, do mesmo modo que para a parte em melhor condições financeiras, distante desta realidade, momentos de profunda transcendência, de catarse ("purgação". Segundo Aristóteles, a catarse refere-se à purificação das almas por meio de uma descarga emocional provocada por um drama.) e de ultrapassamento do próprio "eu".
A renovação das obrigações, a preocupação com as festas dos outros membros do terreiro e com as suas próprias, fazem com que elas sejam um tema cotidiano e objetivo permanente dos adeptos dessa religião, que organizam a própria vida cotidiana em função do trabalho que devem realizar na "casa de santo" para a festa do orixá da casa (ou do seu), e das festas de outras casas a que desejam assistir. Ou seja, sendo constante a produção da festa, o candomblé é a constante produção das horas de glória. As horas de dançar e brilhar no barracão.
Editado por: Mãe Polly d'Yêmanjá.
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